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Não poucas vezes somos objeto — ou vemos outros o serem — de más interpretações: algo feito com boa intenção pode ser julgado de modo totalmente diferente e por vezes até como o contrário do que realmente queríamos.

Esse modo errado de julgar, foi um dos maiores obstáculos para a aceitação da mensagem de Misericórdia trazida pelo Divino Mestre. Entretanto, ter uma noção precisa de quanto Deus é misericordioso ajuda-nos a confiar n’Ele como um Pai. Esse é o tema do texto que ora publicamos, de autoria do Mons. João Clá, Superior Geral e Fundador dos Arautos do Evangelho.

UMA CONCEPÇÃO ERRADA DA JUSTIÇA E DA MISERICÓRDIA

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Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

Os homens costumam julgar as atitudes alheias, em geral, com o seguinte critério: Agiu bem? Merece prêmio e estima. Agiu mal? Merece castigo e repulsa. Tal mentalidade, além de conspurcar a pureza de intenção das boas obras, levando a pessoa a fazer o bem pelo simples interesse de receber uma recompensa, cria na alma condições favoráveis ao desenvolvimento de toda sorte de vícios, semeados pelo amor-próprio ferido, tais como a vingança, o ressentimento e o rancor.

No relacionamento com Deus, em consequência, muitos se baseiam na mesma concepção e O imaginam como um intransigente legislador, a quem a menor infração encoleriza e faz desfechar sobre o faltoso, de imediato, o merecido castigo. Ainda de acordo com esse critério, a benevolência divina apenas incide, em forma de bênçãos, consolações e demais favores sobrenaturais, sobre aqueles que, tendo cumprido de modo exímio os Mandamentos, merecem ser recompensados.

A pecadora unge os pés de Jesus

A pecadora unge os pés de Jesus

Ora, essa visão da perfeição infinita de Deus é muito deformada, pois Lhe atribui uma justiça conforme os limitados critérios humanos e ignora sua misericórdia. E tal atributo é n’Ele tão vigoroso que chega a vencer a própria justiça.

Uma prova da insuperável força de sua compaixão são as palavras dirigidas aos nossos primeiros pais, logo após o pecado original: antes de sentenciar os sofrimentos aos quais a natureza humana estaria sujeita na terra de exílio, Ele lhes prometeu a vinda de um Salvador, nascido da descendência de Adão (cf. Gn 3, 15). Mal o homem havia pecado, o Senhor garantiu-lhe o perdão. Por isso, poderíamos para frasear a afirmação de São João e dizer que, no “fiat!” de Maria Santíssima, o perdão de Deus se fez carne e habitou entre nós (cf. Jo 1, 14).

Durante sua vida mortal, Jesus manifestou com largueza o desejo de salvar, acolhendo com indulgência os pecadores arrependidos que a Ele acorriam, confiantes de ali encontrar o perdão. Entretanto, a mesma misericórdia que tanto atraía uns, despertava acirrada indignação em outros…

MISERICÓRDIA: ALGO QUE OS FARISEUS NÃO ENTENDEM (*)

Narra o Evangelho: “os publicanos [cobradores de impostos] e pecadores aproximavam-se de Jesus para O escutar. Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. ‘Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles’”. (Lc 15, 1-2)

Para entendermos a fundo o motivo de tal objeção, basta considerar que os fariseus e mestres da Lei exemplificam de modo cabal a mentalidade deformada à qual nos referimos. Para eles “Deus é, sobretudo, Lei; julgam-se em relação jurídica com Deus e, sob este aspecto, quites com Ele”. (1) Era também segundo o mesmo critério que avaliavam os outros, discriminando como pecadores— e, enquanto tais, objeto da ira divina e do desprezo dos homens — todos os judeus negligentes no cumprimento das prescrições legais relativas à pureza ritual ou alimentar. Na mesma categoria incluíam os publicanos, pois, além de colaborarem com o domínio pagão exercido por Roma, muitas vezes eram desonestos ao arrecadar os impostos, cometendo extorsões em benefício próprio.

Retorno do filho pródigo

Retorno do filho pródigo

Todavia, o principal alvo de repulsa eram os pagãos, devido à errônea ideia, muito difundida entre os judeus, de que a eleição divina do povo hebreu era sinônimo da condenação eterna de todas as outras nações. Desta forma, se para os israelitas não observantes da Lei e para os cobradores de impostos havia ainda uma longínqua possibilidade de salvação, caso se arrependessem e se reconciliassem com Deus, tal hipótese não se aplicava a um estrangeiro, pelo simples fato de não ser beneficiário das promessas feitas aos patriarcas.

Nada poderia contundir de modo tão veemente essa mentalidade quanto o modo de Nosso Senhor proceder. A cura do servo do centurião romano (cf. Lc 7, 1-10; Mt 8, 5-13), a pecadora perdoada na casa de Simão, o fariseu (cf.Lc 7, 36-50), e a incorporação de um coletor de impostos ao Colégio Apostólico, com o chamamento de Levi (cf. Mt 9, 9-17; Mc 2, 13-22; Lc 5,27-39), são alguns exemplos de atitudes escandalizantes para os fariseus, a cujos ouvidos soavam como blasfêmias as palavras: “Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores” (Lc 5,32). Por esta razão, a todo momento procuravam mostrar sua ferrenha oposição a Ele. (2)

No entanto, como Jesus desejava salvar a todos— inclusive os fariseus e mestres da Lei —, sua resposta a tais objeções foi uma tríade de parábolas, registradas por São Lucas à maneira de um mesmo argumento apresentado sucessivamente, sob diferentes invólucros: [a ovelha desgarrada; a moeda reencontrada; o filho pródigo que volta à casa paterna].

Em cada uma delas, Nosso Senhor visava não só incentivar os pecadores que O ouviam a confiarem no perdão, como também convencer os opositores acerca da necessidade da misericórdia, sem a qual ninguém pode se salvar.

 

(1) BENTO XVI. Jesús de Nazaret. Primera parte. Desde el Bautismo a la Transfiguración. Bogotá: Planeta, 2007, p.252-253.

(2)Cf. Lc 15, 1-32.

 

(*) Subtítulo da redação deste Blog.

 

(Publicado em “O inédito sobre os Evangelhos”, Libreria Editrice Vaticana, 2012, vol. VI, p. 240-244. Também publicado pela revista “Arautos do Evangelho”, nº 141, setembro de 2013, p. 10-12. Para acessar a revista Arautos do Evangelho do corrente mês clique aqui )

 

Ilustrações: Arautos do Evangelho, Museé Anvers (Divulgação)