Um amigo, médico pediatra renomado, narrou-me, não sem alguma emoção, o que se passara entre ele e uma jovem mãe, aquela manhã em seu consultório.
Havia ele atendido em consulta a jovem mãe que, aflita, trazia-lhe seu bebê enfermo. Após examinar a criança e fazer algumas perguntas à mãe, diagnosticara certa doença. Prescreveu o tratamento que lhe pareceu adequado, mas notou algum ceticismo da parte da mãe. Esse imponderável de dúvida continuou, mesmo quando ela agradeceu-lhe e despediu-se amavelmente.
Semanas depois, encontrando-se com a mãe da criança,
achou-a alegre, mas um pouco desconcertada ao vê-lo. Aproximou-se então e amavelmente perguntou pelo bebê.
— Graças a Deus ele está muito bem! Apenas… —interrompeu a frase um pouco perplexa.
O médico tentou ajudá-la:
— Apenas…
— Doutor, peço desculpas desde já ao senhor, mas meu coração me “dizia” que a doença dele não era bem aquela que o senhor diagnosticou. Dei a meu neném o tratamento que ditou meu coração… e ele sarou.
Como pode ser isso? Então longos anos de estudo foram ineficazes e o amor materno resolveu o que anos de faculdade — e de prática — não resolvera?
Num lúcido e fundamentado artigo sobre a atitude dos Apóstolos e das Santas Mulheres face à Ressurreição de Jesus, o Mons. João Clá, Fundador dos Arautos do Evangelho aborda essa temática a propósito de algo ainda mais elevado e que a Igreja comemora na Páscoa.
PERANTE A RESSURREIÇÃO: AMOR OU INDIFERENÇA?
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Curto foi o espaço de tempo transcorrido entre a Ressurreição e a aparição de Nosso Senhor às Santas Mulheres, que partiram em seguida para dar a Boa-nova da Ressurreição aos Apóstolos (cf. Mt28, 9‑10; Mc 16, 9‑10; Jo 20, 14‑18). Porém, a reação deles foi de descrença (cf. Mc 16, 11), pois “essas notícias pareciam-lhes como um delírio” (Lc 24, 11), deixando-os alarmados (cf. Lc 24, 22).
O contraste entre a postura dos discípulos — resguardados por medo dos judeus (cf. Jo 20, 19) — e a de Santa Maria Madalena e suas companheiras mostra que enquanto os homens são prudentes e guiam-se pela razão, as mulheres cometem loucuras…Contudo, como procedeu Jesus ante a cautela de uns e a temeridade de outros?
Aos Apóstolos, Ele “censurou-lhes a incredulidade e dureza de coração, por não acreditarem nos que O tinham visto ressuscitado” (Mc 16, 14), e só Se pôs no meio deles depois deter ido ao encontro das mulheres, às quais, pelo contrário, demonstrou complacência, além de enviar-lhes Anjos (cf. Mt 28,1‑7; Mc 16, 5‑7; Lc 24, 4‑7; Jo 20,12‑13) que as trataram com especial cortesia.
E mais, os discípulos, incumbidos de divulgar a verdade pelo mundo inteiro, acabaram por ser evangelizados pelas Santas Mulheres que, ao sair correndo para anunciar a Ressurreição, se tornaram apóstolos dos Apóstolos
Subentende-se, então, que Nosso Senhor gosta de atitudes irrefletidas? Com efeito, o amor delas não era totalmente puro por estar misturado com imprudências. Basta observarmos que Nossa Senhora não Se incorporou à aventura, sinal de não ser esta isenta de certo desatino. E elas próprias tampouco creram logo de início, uma vez que o aviso dado a São Pedro e a São João foi apenas sobre o desaparecimento do Corpo. Não obstante, possuíam um amor mais intenso que o dos Apóstolos. Sua conduta, apesar dos defeitos, é de quem ama.
Isto põe em evidência uma realidade impressionante sintetizada na célebre frase de Santo Agostinho: “Dilige, et quod vis fac — Ama e faze o que queres”.(1) Quando há caridade, ainda que imperfeita, Deus aceita as nossas disposições com benevolência e as aprimora. Assim, entre a prudência dos discípulos e o desvario das Santas Mulheres, Nosso Senhor Jesus Cristo pendeu para este último. Por quê? No comportamento prudente não havia amor e no insensato, sim. Se Jesus premiou a audácia, foi graças a algo de saudável e santo a ela ligado.
Que concluir deste episódio em benefício de nossa vida espiritual? Ele serve para nos mostrar quanto a razão é importante e a doutrina deve ser assimilada de modo exímio. Mas, ao mesmo tempo, manifesta que a ousadia com base numa intuição dada pelo amor pode sobrepujar a ação originada do simples conhecimento. Isto porque a audácia está vinculada ao dom de conselho, e este é superior à virtude da prudência.
Se alguém age de acordo com a prudência, seus atos são humanos, embora auxiliados pela graça; enquanto pelo dom de conselho a alma recebe uma inspiração certeira — que transcende a razão discursiva —, mediante a qual escolhe o caminho a seguir e, saltando as premissas, chega logo à conclusão, sob uma moção do Espírito Santo.
Inúmeros feitos, no decurso dos séculos, revelam isto. Conta-se que Hernán Cortés, prevenindo a defecção dos homens de sua comitiva— tentados de abandoná-lo na heroica gesta de conquistar o imenso México para Nosso Senhor Jesus Cristo com algumas poucas centenas de soldados —, mandou destruir os navios de sua própria frota, a fim de impedir-lhes a retirada. Audácia levada ao extremo, resolução épica, não fruto de um pausado silogismo, mas de uma infusão do dom de conselho. É como a mãe que, pelo instinto materno, discerne com clareza a doença do filho que os médicos não conseguem descobrir.
Princípio este que com tanta propriedade exprimiu Joseph de Maistre: “La raison ne peut que parler, c’est l’amour qui chante — A inteligência só sabe falar, o amor é que canta”. (2) E também Pascal, em sua famosa sentença: “O coração tem suas razões que a razão não compreende!”. (3) De fato, este amor é fonte de conselho, de entusiasmo, de certos arrojos que dificilmente brotam do puro raciocínio. É, pois, primordial amar, porque a nossa Santa Religião é sobremaneira grande para ser só entendida, ou para a ela aderirmos partindo do mero intelecto.
Com Santa Teresinha do Menino Jesus, é preciso exclamar: “Compreendi que só o Amor fazia agir os membros da Igreja e que se o Amor viesse a se extinguir, os Apóstolos não anunciariam mais o Evangelho, os mártires recusariam derramar seu sangue… Compreendi que o Amor encerra todas as vocações, que o Amor é tudo, que abraça todos os tempos e todos os lugares… Numa palavra, que ele é eterno!…”. (4)
Se condensássemos o Evangelho num único termo, este seria amor! Eis um dos importantes ensinamentos contidos nos relatos evangélicos da Ressurreição. Com o coração abrasado entreguemo-nos a Cristo por inteiro, sabendo que as nossas audácias são tomadas por Ele com benevolência.
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(1) SANTO AGOSTINHO. In Epistolam Ioannis ad Parthos tractatus decem. Tractatus VII, n.8. In: Obras. Madrid: BAC, 1959, v.XVIII, p.304.
(2)DE MAISTRE, Joseph. Essai sur le principe générateur des constitutions politiques et des autres institutions humaines. Paris: L. Ecclésiastique, 1822, p.19, nota 3.
(3)PASCAL, Blaise. Pensées sur la religión. C.II, n.14. In: Pensées. Dijon: Victor Lagier, 1835, p.50.
(4) SANTA TERESA DE LISIEUX. Manuscrito B. Minha vocação é o amor. In: Obras Completas. São Paulo: Paulus, 2002, p.172.
(Adaptado de “Os Apóstolos ou as Santas Mulheres?” in “O inédito sobre os Evangelhos”, de autoria do Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, Libreria Editrice Vaticana, 2014, vol. III, p. 278-281. Publicado também na revista “Arautos do Evangelho”, nº 160, abril de 2015, p. 13-15. Para acessar o exemplar do corrente mês clique aqui )
Ilustrações: Arautos do Evangelho, brfreepickcom
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