Ao perguntarmos a alguém qual a época mais feliz de sua vida, dificilmente a resposta não será: “quando eu era criança”.

A muitos vem a lembrança da conhecida frase “ó que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida”. Outros, mais voltados para o lado religioso, lembram a frase de Jesus: “Deixai vir a Mim os pequeninos”.

O texto a seguir, de autoria do Mons. João Clá, Fundador dos Arautos do Evangelho, mostra-nos como o próprio Jesus via a inocência tão ameaçada nos dias que correm.

JESUS EXTERNA SEU AMOR POR QUEM JAMAIS PECOU

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

“E tomando um menino, colocou-o no meio deles; abraçou-o e disse-lhes: ‘Todo o que recebe um destes meninos em Meu nome, a Mim é que recebe; e todo o que recebe a Mim, não Me recebe, mas Aquele que Me enviou’”. (Mc 9, 36-37)

Embora os Evangelistas sejam muito sintéticos ao narrar esta passagem, podemos bem imaginar o quanto Nosso Senhor deve ter-Se demorado com esse menino, fazendo belíssimas considerações sobre a infância. Podemos supor também com quanto ardor elogiou sua humildade e desprendimento, pondo em realce as virtudes próprias a quem jamais pecou.

“Todo que recebe um desses meninos em Meu nome, é a Mim que recebe”

Transparece assim, neste versículo do Evangelho, todo o amor de Jesus pela inocência, representada na criança por Ele abraçada. Esse menino — o futuro mártir Santo Inácio de Antioquia, segundo refere Eusébio de Cesareia (1) — simboliza a pessoa que se entrega a Deus, sem reservas nem racionalizações, com reta intenção.

O fato de abraçar o menino significa que os humildes são dignos de Seu abraço e de Seu amor”. (2)

Inocente, o modelo a seguir

Cristo é modelo de inocente, enquanto Homem, e a Inocência em essência, enquanto Deus. Ele chama para junto a Si aquela criança porque, como ensina São Leão Magno, “ama a infância, mestra de humildade, norma de inocência, modelo de mansidão. Cristo ama a infância, sobre a qual quer modelados os costumes dos adultos, e à qual quer reconduzida a idade senil; e leva a seguir seu humilde exemplo àqueles que depois eleva ao Reino eterno”.(3)

Sobre este versículo, comenta São Beda: “E [Jesus] acrescenta ‘em Meu nome’ para que os discípulos, guiados pela razão, adquiram em nome de Cristo a virtude que o menino pratica guiado pela natureza. Entretanto, para não se pensar que Ele se referia só àquele menino quando ensinava que Ele era honrado nos meninos, acrescenta: ‘E todo o que recebe a Mim, não Me recebe, mas Aquele que Me enviou’, etc., querendo ser considerado em grau igual ao de Seu Pai”. (4)

“Todo o que recebe um destes meninos em Meu nome, a Mim é que recebe”. Jesus mostra-se assim igual ao Pai, indicando, ao mesmo tempo, que quem recebe o inocente, o afaga e o protege, abraça na realidade ao próprio Deus.

O bem mais precioso que o homem pode receber

Preservar a inocência batismal — ou recuperá-la, caso tenha tido a desgraça de perdê-la — deve ser a meta de todo cristão. Porque quem a possui conserva na alma Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai e o Espírito Santo.

A inocência é o bem mais precioso que o homem pode receber. A união com a Santíssima Trindade de quem jamais pecou outorga-lhe uma autoridade que nem o poder, nem o dinheiro, nem as manobras diplomáticas são capazes de conceder.

Em sua primitiva inocência, o homem era inerrante, pois como ensina São Tomás: “Não era possível, enquanto durasse a inocência, que o intelecto humano desse sua aquiescência a algum erro como se fosse verdade”. (5) De forma análoga, o homem que mantém sua inocência batismal será infalível na medida que em se deixe guiar pela graça, pelas virtudes infusas e os dons do Espírito Santo. Assim o afirma o padre Garrigou-Lagrange: “Na ordem da graça, a fé infusa faz-nos aderir à palavra divina e ao que esta exprime.[…] Enquanto os sábios dissertam longamente e levantam todo tipo de hipóteses, Deus faz Sua obra naqueles que têm o coração puro”. (6)

Devemos, portanto, envidar todos os esforços para manter sem pecado a nossa alma, ainda que seja necessário, para isto, sacrificar a própria vida. E se, por infelicidade, tivermos perdido a inocência batismal, empenhemo-nos ao máximo em recuperá-la, como o fez Santa Maria Madalena, através de um ardente amor ao Divino Mestre. E tanto amou que se assemelhou ao Amado a ponto de ser venerada como a primeira das virgens na ladainha de todos os Santos.

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(1) Cf. DEHAULT. L’Evangile expliqué, défendu, médité – tome troisième. Paris: Lethielleux, 1867, p. 290.

(2) BEDA, São. In Marci Evangelium Expositio, l. 3, c. 9: PL 92, 0224.

(3) LEÃO MAGNO, São. Sermones in præcupuis totius anni festivitatibus ad romanam plebem habiti. Serm. 37, c. 3: PL 54, 0258.

(4) BEDA, São. Op. cit., PL92, 0225.

(5) AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. I, q. 94, a. 4.

(6) GARRIGOU-LAGRANGE,OP, P. Réginald Marie. El sentido común. La filosofía del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: DEDEBEC y Ediciones Desclée, De Brouwer, 1945, p. 340-344.

(Transcrição de trechos de “O inédito dos Evangelhos”, Libreria Editrice Vaticana, 2014, p. 381-385. Publicada também na revista “Arautos do Evangelho”, nº 93, setembro de 2009, p. 10-17. Para acessar o exemplar do corrente mês clique aqui )

Ilustrações: Arautos do Evangelho, Gustavo Krajl, FreImages